A BAIXA POMBALINA DE LISBOA* E O CINEMA:
UMA OPERAÇÃO DE CONSERVAÇÃO DA MEMÓRIA

Baixa Pombalina of Lisbon and Cinema: a collective memory project

Dr. João Mascarenhas Mateus

Investigador
Coimbra - Portugal

RESUMEN. La Baixa Pombalina como centro histórico de Lisboa ha sido durante siglos palco de muchos de los más importantes acontecimientos de la Historia de Portugal. Representada sucesivamente através de la pintura, de los grabados y de la fotografía, Baixa Pombalina ha sido utilizada más recientemente por el Cine para presentar la Historia y para hacer Historia. El artículo reflexiona sobre la evolución de esta ciudad fílmica, desde los primeros documentales y ficiones presentando sus aspectos más cosmopolitas, pasando por las imágenes de soluciones urbanísticas intrusivas de su integridad presentadas como necesarias al progreso de una capital europea. En las últimas decadas, Baixa Pombalina viene sendo filmada de manera más intimista contribuyendo a la construcción de imágenes simbólicas asociadas a Lisboa, entendidas en el ámbito de una cultura globalizada.
Palabras clave: Baixa Pombalina, Lisboa, Cine, Historia, Urbanismo, Cosmopolitismo, Imagen símbolica.

ABSTRACT. Baixa Pombalina, the historical centre of Lisbon, was for centuries the stage for many of the most important events of Portuguese History. Depicted successively trough painting, engraving and photography, Baixa Pombalina was also used by Cinema to present History and to make History. The article presents how this filmic city changed with time, from the first documentaries and fictional movies portraying its most cosmopolitan aspects, trough the images of urbanistic solutions responsible for the intrusion of its integrity presented as signs of progress and modernization of an European capital. Lately, Baixa Pombalina was filmed in intimate ways helping the construction of Lisbon symbolic image in the context of a globalized culture.
Key-words: Baixa Pombalina, Lisbon, Cinema, History, Urbanism, Cosmopolitanism, Symbolic Image.

 

Quando em 2005, comissariei a exposição denominada Baixa Pombalina: 250 anos em imagens para a Câmara Municipal de Lisboa, os documentos cinematográficos revelaram-se incontornáveis, particularmente poderosos e eficazes para o impacto social que se pretendia.
O objectivo da exposição era envolver os visitantes e sobretudo os lisboetas no processo de candidatura a Património Mundial do principal centro histórico da capital. Procurou-se explicar e fazer sentir como aquele conjunto monumental fazia parte integrante da sua história, do seu destino comum. Para ese fim foram escolhidas imagens (gravuras, fotografias, pinturas, serigrafias) que reflectissem acontecimentos marcantes para a história de Lisboa e de Portugal que tivessem ocorrido naquela zona da cidade. Material que na sua totalidade se encontrava depositado no Arquivo Fotográfico Municipal e no Museu da Cidade. Articularam-se as imagens fixas numa sequência cronológica paralelamente a uma sequência “emotiva” de associação a palavras que resumiam o evento que cada uma das imagens reflectia: revolução, desembarque de tropas, casamento real, embarque de tropas, visita de chefe de estado, funeral de estadista, proclamação da república, terramoto, reconstrução, manifestação, incêndio, invasão, concerto, etc.
Procurou-se assim trazer para o momento presente, de visita da exposição, ecos mais ou menos longíquos de múltiplas ocasiões que pertenciam à história comum, em que qualquer um se poderia rever a partir de recordações próprias, narradas ou apreendidas por outros meios de comunicação e cultura.
Desde cedo, no entanto, se compreendeu que as imagens fixas, na sua maioria fotografias destinadas a reportagens, eram eficazes sobretudo na transmissão da história nas suas duas vertentes mais conhecidas. A primeira, a tradicional enumeração de factos, de pessoas e datas e a segunda a de registrar eventos que fazem parte e são fruto de um destino colectivo. O valor artístico das gravuras e serigrafias era sobretudo apreciável na visão particular de um determinado evento que cada um dos seus autores desejava apresentar. Os tumultos contra as tropas francesas de ocupação em 1808 vistos da colina do Carmo ou, por exemplo a vista privilegiada do casamento real de D. Pedro V e Stephanie de Hohenzollern, supostamente tomada na Praça do Rossio a partir de um ponto acima do nível das cabeças da população que assistia ao desfile em carruagem aberta depois da cerimónia na Igreja de São Domingos.
No que toca às fotografias era já possível observar, em alguns casos, uma preocupação de transmissão do dinamismo gerado por diferentes actores de um evento. Recordo, por exemplo, a perspicácia responsável pela tomada de dois clichés quase simultâneos durante o desembarque do Kaiser Guilherme II, em 1904. Um deles permite observar a inclinação das cabeças dos embaixadores alinhados à passagem dos chefes de estado. O outro, apresenta-os de frente, depois da vénia protocolar.

Complementaridade cinematográfica das fotografias de Alberto Carlos Lima (18--/1949) e de António Novaes (1855-1940) na visita do Kaiser Guilherme II de Alemanha em 27.03.1905 (Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa).

Apesar da riqueza expressiva das imagens fixas, só o cinema permitia e permite a composição dinâmica temporal de personagens, de enfases de carácter, de eventos e diálogos. Uma capcidade de transmissão da História própria do cinema que vai muitas vezes mais além da composição plástica-artística. Por estas razões, constituiu um exercício fascinante a escolha de imagens cinematográficas que apresentassem a Baixa Pombalina não só na reconstituição de eventos históricos mas também como cenário de intrigas ficitionais. A recolha de material e a montagem sequencial de extractos de cada uma das peças foi levada a cabo por Fernando Carrilho da Videoteca Municipal. Os títulos utilizados foram limitados aos disponíveis na Videoteca e por isso ficaram de fora alguns documentários históricos importantes.
Depois de umas curtas imagens de 1908 realizadas durante o funeral do Rei D. Carlos I e do Principe D. Luís Filipe cujo cortejo passou pela Baixa, a primeira sequência escolhida mostra a Praça do Rossio ocupada por algumas tropas e pela população que impacientemente olha a câmara de frente e espera o desfecho da revolução que implantou a República em 1910, num documentário de que se desconhece o autor.
De palco priveligiado dos grandes acontecimentos nacionais e em tempo de alguma estabilidade política, a imagem da Baixa começa a afirmar-se como sinónimo do cosmopolitismo da capital. No excerto escolhido de Lisboa Crónica anedótica (1930) de Leitão de Barros os protagonistas de um dos apontamentos sobre os costumes de Lisboa, camponeses em visita à cidade, começam por observá-la a partir do alto do elevador público do Carmo, para depois empreenderem o seu atravessamento num encadear de peripécias cómicas relacionadas com o pouco hábito que os protagonistas têem com o trânsito automóvel e as modernidades oferecidas pela metrópole.
Na longa metragem A Revolução de Maio (1937) de António Lopes Ribeiro, a Praça do Comércio serve de cenário monumental à tribuna de Salazar e Carmona durante o desfile da marinha de guerra, encenação destinada à glorificação do Estado Novo.


O Cais das Colunas e a praça de táxis em Aldeia da Roupa Branca – 1938 (Atalanta Filmes).

Por seu lado, o quotidiano do centro de Lisboa, reflecte-se em cenas de filmes como Aldeia da Roupa Branca (1938) de Chianca de Garcia. A Praça do Comércio, então ainda com acesso rodoviário unicamente pela zona norte ou seja pela Rua Augusta, da Prata, Ouro e Arsenal constituía lugar de passeio e de lazer da cidade. Os muros de guarda da zona do cais das colunas com os seus bancos de pedra eram zonas de encontro ao fim do dia e funcionavam como esplanada natural. A praça de táxis servia os ocasionais clientes que vinham tratar à Baixa de assuntos burocráticos ou simplemente fazer as suas compras e passear.
Em películas como o Pai Tirano (1941) de António Lopes Ribeiro, o reforço da ideia de centralidade de metrópole consubstanciada na Baixa é feito com base na instituição comercial onde era possível comprar todos os produtos importados das melhores lojas de Paris ou de Londres: os Armazéns do Grandela, à imagem dos Printemps ou dos Harrods. Parte importante da acção desenrola-se no interior das secções de sapataria, relógios, rádios, na Perfumaria da Moda e nas ruas do Chiado, sinónimo de sofisticação e internacionalização. Este simbolismo de plataforma cosmopolita e de espionagem mundial chega mesmo a produções internacionais como The Conspirators.(1944) de Jean Negulesco, com o downtown de Lisboa idealizado através de estereótipos associados ao mundo ibérico. A imagem de metrópole continua a ser reflectida nos documentários Isto é Lisboa realizados pela Câmara Municipal de Lisboa nas décadas de 1940-1960. O bulício das ruas, o trânsito rodoviário como sinal de desenvolvimento, as decorações de Natal e as montras desse empório a céu aberto sempre actualizadas com as últimas novidades. Um empório fiel à função primordial da Baixa a que o projecto pombalino deu continuidade.

O Chiado em imagens do filme O Pai Tirano – 1941 (Zon Lusomundo).

Paralelamente, a Baixa Pombalina é também incluída em documentários que apresentam os grandes projectos de “melhoramentos urbanísticos e de salubridade” para a cidade. É o caso de Lisboa de hoje e amanhã (1948) de António Lopes Ribeiro, onde é mostrada a antiga e a nova Praça da Figueira, ou de Lisboa de ontem e de hoje (1956), de Augusto Fraga. Tratam-se de documentos históricos fundamentais, de história viva, impossíveis de substituir por registos fotográficos, plantas ou maquetes. O cinema passa a fazer parte integrante da história da cidade e a constituir, juntamente com a própria cidade, um património que hoje é indispensável preservar, pelo registo de memórias que só a riqueza da arte cinematográfica pode em parte restituir.
Todas estas transformações mais ou menos superficiais da cidade que o cinema vai registrando não têm no entanto comparação com o grande trauma urbanístico que consistiu na abertura da Avenida da Ribeira as Naus entre 1939 e 1948. Até então a comunicação viária da cidade com a Baixa era feita de forma radial e a Praça do Comércio consistia na plataforma principal da comunicação pedonal da população com o rio. Era a sala de estar e de recepção de Lisboa. O desmantelamento do arsenal e o aterro das docas permitiu a invasão da Praça do Comércio por um volume crescente de veículos que pouco a pouco a ocuparam totalmente. A comunicação pedonal da Praça com o rio é nessa altura cortada e um gigantesco parque de estacionamento passa a ocupar a sua totalidade deixando somente passeios para os peões.

A abertura da Avenida da Ribeira das Naus em 1948, em Lisboa de hoje e amanhã -1948.

Desta grande e danosa operação urbanística constituiem testemunhos os referidos documentários que numa primeira fase a apresentam como grande melhoramento infra-estrutural. Numa segunda fase, as vistas aéreas das Praças do Rossio e do Comércio são apresentadas como placas giratórias da sempre “desejada” e, “vendida como tal”, metrópole moderna e capital. O Cais das Colunas passa  a ser usado como rampa de desembarque dos cacilheiros como complemento à Estação Sul e Sueste. Variadas imagens que permitem analisar essa ruptura num orgão vital da cidade. Contrastantes entre modernidade e tradição secular. Veículos e fragatas com as suas longas velas suspensas no rio, modernidade e profissões típicas de Lisboa: amoladores, ardinas, varinas, vendedeiras de fruta e de leite. Imagens sempre cada vez mais distantes e fugazes que constituem memória histórica.

A invasão de automóveis provocada pela abertura da Avenida Ribeira das Naus,nos documentários da Câmara Municipal de Lisboa.

Paralelamente à elaboração de testemunhos mais ou menos idependentes dos traumas da cidade, o cinema permite novos execícios que tentam escrutar a sua alma. Uma certa tradição desse tipo de filmes é iniciada não por portugueses mas por estrangeiros. É o caso de Les amants du Taje (1955) de Henry Verneuil. Nesta longa metragem, a Baixa é vista de fora, a partir do barco que leva os turistas em passeio fluvial e de dentro, nas ruas, onde o som das guitarras quando passa Amália Rodrigues se mistura com as buzinas dos automóveis e o bulício das pessoas.
Esta capacidade de abstração e distância dos sinais mais evidentes e superficiais da cidade só é possível através da arte cinematográfica. A cidade passa a ser cenário e ao mesmo tempo parte da vida interior dos personagens de ficção e dos seus realizadores.


Les amants du Tage (1955), de Henry Verneuil.

Com a história do pugilista Belarmino (1964) de Fernando Lopes, as imagens de uma Praça do Rossio vazia pela madrugada constituem espaço de meditação e de anamnese da vida recente do protagonista. Belarmino bebe água e refresca a cara numa das fontes de ferro fundido do Rossio entre imagens entrecortadas do seu último combate e de uma pausa do mesmo. As figuras da fonte confundem-se com a dança de pés dos dois boxeurs.

Belarmino de Fernando Lopes, 1964 (Madragoa Filmes).

Nos últimos anos do regime do Estado Novo a Baixa Pombalina continua a ser filmada como pano de fundo das últimas imagens simbólicas do estado: recepção de chefes de estado, paradas militares e celebrações do 10 de Junho com atribuição das medalhas da Guerra Colonial. Documentários que contrastam com filmes intimistas e de sugestão como Os Verdes Anos (1965) de Paulo Rocha.

Visita do Presidente Café Filho da República Federativa do Brasil, em Abril de 1955.

O cinema como máquina de fazer história está de novo presente na cobertura da revolução do 25 de Abril de 1974. Em particular registrando as imagens dos carros armados que atravessam a Rua Augusta aplaudidos pela população. Imagens que serão exactamente reconstruídas 26 anos mais tarde no filme Capitães de Abril (2000) de Maria de Medeiros. Fixando para sempre no imaginário colectivo esse evento determinante.

Imagem gravada em 25 de Abril de 1974 e fotograma de Capitães de Abril (2000), de Maria de Medeiros.

A partir dos anos de 1980, Lisboa como muitas cidades europeias é sucessivamente objecto de filmes que a usam como cenário e em particular que projectam diversas imagens da Baixa Pombalina como parte integrante da cidade. Longas metragens intimistas onde a cidade é o lugar onde o protagonista se perde para sempre (Dans la ville blanche, 1983 de Allain Tanner), em que a cidade é lugar de última peregrinação antes da morte do protagonista (Les Nuits Fauves, 1992 de Cyril Collard) ou em que se pretende simplesmente registrar a sua alma (Lisbon Story, 1994 de Wim Wenders).
Por outro lado o carácter urbano simultaneamente português e ocidental da Baixa Pombalina tem servido mais recentemente a ambientar obras literárias de difusão internacional como “La casa de los espíritus” de Isabel Allende (The House of the Spirits, 1993 de Billie August),  “Sostiene Pereira” de Antonio Tabucchi (Sostiene Pereira, 1995 de Roberto Faenza), ou o ainda não estreado Singularidades de uma Rapariga Loira de Eça de Queiróz, de Manuel de Oliveira.

Imagens de The House of Spirits (1993) de Billie August e de Lisbon Story (1994) de Wim Wenders.

A Baixa Pombalina, como certamente muitos outros centros históricos carregados de memórias e de significado, têm sido usados pelo cinema e têm usado o cinema para construir a História. Os pretextos e as motivações para estas realizações são variadas. Tal como uma tela de pintura em branco ou um bloco de pedra em bruto, a obra cinematográfica permite absorver as pinceladas, os gestos, os sentimentos mais íntimos dos seus realizadores e actores.
O cinema  constitui parte integrante da história das cidades e como tal também da Baixa Pombalina e continuará certamente a ser responsável pela produção de documentos históricos e de obras de arte com ela relacionadas. Uma historicidade incontornável para interpretar a sua evolução ou estudar formas a dar ao seu futuro.

 

* - A Baixa Pombalina compreende a parte de Lisboa reconstruída segundo o plano impulsionado pelo Marquês de Pombal após a destruição provocada pelo terramoto de 1755. Em termos urbanísticos corresponde a uma das primeiras cidades “modernas” do Ocidente em que soluções integradas de concepção arquitectónica, estandardização de estruturas e acabamentos, racionalização viária, prevenção de incêndios, de sismos, redes de esgotos, recolha de lixos e perequação da propriedade foram contempladas de forma associada. Um exemplo único de urbanismo moderno muitos anos antes das operações de Haussmann em Paris e de Cerdá em Barcelona.

 

BIBLIOGRAFIA

AAVV., Mateus João Mascarenhas (ed.), Baixa Pombalina: 250 anos em imagens / 250 years of images, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2005. Disponível em pdf em http://ulisses.cm-lisboa.pt/data/002/002/pdf/baixa.pdf

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ISSN 1988-8848