O ALOGON DE ARISTÓTELES
E O DRAMA DE BILLY WILDER

Aristotle’s alogon and Billy Wilder’s drama

Dr. Maria Joana de Melo
Filóloga
Lisboa

Recibido el 28 de Septiembre de 2015
Aceptado el 13 de Octubre de 2015

Resumo. A relação entre o homem e os deuses, bem como a dramatização da fatalidade têm sido, desde sempre, consideradas traço distintivo da tragédia Grega. Na senda de um estudo comparativo entre aquela expressão cultural Ática e o cinema clássico americano, tenciono identificar a presença deste traço antigo em cinco filmes da autoria de Billy Wilder. Ao demonstrar que a construção do drama extremo hollywoodiano, ao contrário da comédia, pode não produzir um efeito dramático intenso – tal como o temor e compaixão – sem a sombra do divino e do alogon, descrito na Poética de Aristóteles como o irracional, pretendo concluir que o desígnio imperscrutável dos deuses não desvaneceu depois da tragédia grega. Escolhi Billy Wilder pelo carácter paradigmático da sua obra no período clássico de Hollywood, de cuja filmografia seleccionei apenas os filmes em que o traço cómico está totalmente ausente, nomeadamente Lost Weekend (1945), Double Indemnity (1944), Witness for the Prosecution (1957), Sunset Boulevard (1950) e Ace in the Hole (1951).
Palavras-chave. Billy Wilder, Cinema+Tragédia Grega, Aristóteles+Cinema, Deus no cinema clássico, Deus ex-machina no argumento, Aristóteles+Alogon.

Abstract. Both the relationship between men and the gods and the dramatization of fatality have been seen always as unique features of Greek tragedy. These Attic Greek characteristics can be discussed in relation to Classical Hollywood Cinema. The paper aims to identify their presence in five Billy Wilder films. Hollywood drama, unlike comedy, cannot transmit intense feelings –such as pity and fear- without a hint of the divine and an evidence of the alogon, described as the irrational in Aristotle's Poetics. Therefore, Greek tragedy was not buried in Hollywood. Billy Wilder sets the paradigm for Classical Hollywood Cinema in five films without comic situations: Lost Weekend (1945), Double Indemnity (1944), Witness for the Prosecution (1957), Sunset Boulevard (1950) and Ace in the Hole (1951).
Keywords. Billy Wilder, Cinema+Greek Tragedy, Aristotle+Cinema, God in classic film, Deus ex-machina in script, Aristotle+Alogon.

 

A excepcionalidade da tragédia ática promoveu no pensamento moderno uma síntese a que se chama o trágico. Longe de uma noção plenamente sintagmática, distanciado da soma de partes que constitui uma tragédia, o trágico surge como uma cosmovisão do mundo e do homem, como paradigma de um fatalismo, geralmente pessimista, da condição humana. Nesta nominalização da tragédia o homem perde agenciamento, tornando-se paixão inevitável, fruto de uma linhagem original de pecado, devendo alguma definição à teoria psicanalítica de Freud.
                             
No trágico, a crueldade da voz divina reside na sua arbitrariedade. Todavia, na tragediografia antiga – descrita por Aristóteles – não há lugar para uma arbitrariedade prepotente de deuses fortalecidos na revelação da fraqueza humana, transformando heroicidade e individualidade humana em hybris, mas apenas para o facto de as probabilidades de erro, hamartia, superarem as de sucesso, como no tiro ao alvo. No estudo que se segue procuro salientar que ambas as noções – trágico e tragédia – estão presentes nos dramas de Billy Wilder. Tanto as sombras do fatalismo irracional, alogon, como a ordenação clássica dos constituintes de uma tragédia.

É importante definir sucintamente o modelo de tragédia derivado da observação aristotélica, salientando antes do mais que a condição para o efeito trágico reside em não representar nunca a dupla herói e vilão (Po. 1453a,13). Na tragédia o protagonista deve ser o seu próprio inimigo e a destruição é sempre autodestruição, sendo que a primeira é seminal na ficção (não há histórias sobre o bem, em que tudo começa bem, depois corre bem e finalmente acaba bem) e a segunda é seminal na tragédia. A autodestruição encerra o valor aristotélico da peripécia (momento em que a acção se transforma no seu contrário), uma vez que todos agimos para a auto-preservação. O factor decisivo para essa peripécia é a ignorância, agnose, dissipada no momento em que o herói trágico reconhece essa ignorância. Não se conhecendo a si mesmo, ele tende a obstruir a verdade com traumas obscuros. «Tell the truth», a máxima bordada no miserável pasquim onde Tatum (Ace in the Hole, 1951) vai acabar os seus dias, indica que todavia, nas tragédias, há sempre um vencedor: Apolo, ou a Verdade. Na peripécia trágica, esse momento de passagem da ignorância ao conhecimento não é apoteótico mas catastrófico. A angústia fatalista do trágico advém de o seu catalisador ser simultaneamente ignorância e conhecimento.

Em suma, o argumento trágico resume-se nas palavras de Sir Wilfred, «like a drowning man clutching at a razor blade» (Witness for the Prossecution, 1957), mostrando a cisão entre ethos (preservação) e mythos (destruição), momento em que «a vida parece ganhar vida própria» (Scorsese, 2006). Peripeteia, é   também  metabole, mudança, passagem da felicidade à infelicidade e vice-versa, encerrando a lição secular da precariedade, num instante somos aristos, no outro kakistos. Silk (2003) e Nussbaum (1986) indicam a mudança como principal tema trágico. Mover-se é caminhar para a morte, o herói trágico embarca numa luta invejada contra o tempo, por isso contra a sua humanidade. Essa viagem leva o herói até ao fim da linha «all the way down the road» (Double Indemnity, 1944), numa insistência feroz que conduz o herói sofocleano, contra tudo e todos, até à autodestruição (Knox, 1965: 5). Apesar desta força sobre-humana, o herói aristotélico tem de suscitar empatia e para isso deve ser como nós: «nem primar pela virtude nem pelo vício» (Po. 1453a,5), o castigo do homem mau não tem efeito trágico (Idem) pois este não erra, i.e., comete o crime pretendido. A morte de Leo (Ace in the Hole, 1951) foi literalmente um erro de cálculo, hamartia, fosse Tatum um assassino de sangue frio perder-se-ia o efeito trágico. O herói tem de ser e não ser culpado, a sua hybris tem de ser a nossa também, e pode não significar apenas orgulho, já que, literalmente, como explica Halliwell (2002), indica antes marginalização, incumprimento das regras, ruptura com o sistema.

Do ponto de vista formal Wilder e Aristóteles professam a primazia do argumento sobre os outros componentes do espectáculo (Po 1450a, 35). Desprezado pelos Cahiers du Cinèma, Wilder sempre declarou não fazer cinema para gourmets; a ideia do cinema de autor não o seduz, também para Aristóteles os indícios de estilo autoral não só são dispensáveis (Po 1450a, 30), como prejudicam o realismo e o efeito mimético. O traço autoral deve conter-se à construção de um argumento verosímil e causal, o que, paradoxalmente, acaba por ser o traço autoral das comédias de Wilder, as quais fundamentam cada surpresa na probabilidade, senão mesmo na necessidade, isentas de qualquer dimensão sobrenatural, o seu apelo excitante reside no eixo da causalidade. Problematicamente o mesmo não se passa nem nas tragédias gregas, nem nos dramas de Wilder, em que a presença do irracional, alogon, é uma constante. Mas, como veremos, alguma irracionalidade é indispensável ao efeito último da tragédia: temor e compaixão.

Em Aristóteles, alogon tem vários sentidos, tanto significa script holes, ou o que não é visualizável, ou as soluções ex machina ou ainda os cheap plot tricks. O visualizável está directamente relacionado com a presença ex machina (Roberts, 1982), isto é, não há nada de mal em encenar uma prece ou apelo aos deuses, nem nada de ilógico no facto de essa prece ser atendida; o que não se pode é ver um deus descer na geringonça concedendo o pedido. O mesmo se passa no cinema, víssemos nós o deus e estaríamos perante ficção científica.

Na tragédia, o efeito pretendido é mais forte do que o da comédia, ou pelo menos mais emocional, menos distanciado e crítico; a comédia não pode despertar temor ou compaixão. Talvez por isso Aristóteles acabe por ser mais permissivo quanto à universalidade, catholon, do enredo trágico, submetendo o encadeamento lógico dos factos ao efeito: «escrever coisas impossíveis é errar, mas está correcto se o objectivo próprio da arte [temor e compaixão] for alcançado, se dessa forma se conseguir que uma ou outra parte se torne mais impressionante» (Po 1460b, 25). O efeito dramático torna necessários certos buracos na trama (Koelb, 1984). Na melhor tragédia de todas há um script hole: o facto de nunca ter passado pela cabeça de Édipo perguntar o que aconteceu ao anterior rei de Tebas; no melhor filme de todos um jornalista investiga o significado da última palavra que Kane proferiu ao morrer sozinho.

Por outro lado, a tragédia pode e deve tornar a coincidência – identificada genericamente nos manuais de argumento com o termo deus ex- machina – em fatalidade, moira, fatum, etc. A chegada do barman com a máquina de escrever em Lost Weekend (1945) é tão excêntrica quanto a chegada do mensageiro em Rei Édipo, mas ambas as situações surgem como resposta a uma prece, e uma vez que todos tendemos a não acreditar em coincidências, o próprio espectador se encarrega de ver no improvável o provável, a justiça poética. Sobre a comédia não paira a sombra do destino, no máximo representa-se a mecanicidade humana, o homem ridiculamente previsível. Aristóteles sublinha que, na ficção, basta ao poeta fazer o irracional parecer «razoavelmente plausível» (Po1460a, 30), rendendo-se à evidência de que na vida «é possível que possa acontecer alguma coisa contra a verosimilhança» (Po. 1461b,20), o irracional não apaga forçosamente o realismo, o small world effect ainda é algo familiar a todos. Os poetas trágicos fabricam augúrios, sonhos e indícios da presença divina como elementos funcionais da tragédia. Desde aí a dimensão metafísica da acção humana traz grandeza ao trágico, o herói parece larger than life, megethos, qualidade tão apreciada no concurso trágico como na cerimónia dos Óscares. Paradoxalmente o alogon pode mesmo contribuir para o realismo, numa ilusão de referencialidade a história parece já existir antes de ser escrita.



©Universal Studios Home Entertainment

Em Lost Weekend (1945) encontramos uma das mais fáceis ilustrações da hamartia: o alcoolismo, o qual permite um herói tão culpado quanto inocente. Wilder deixa claro que para o irmão Don é culpado, ou activo, e para a namorada ele é inocente, ou passivo. A divisão, «there are two of us you know: Don the drunk and Don the writer» permite a dualidade humana, o bom e mau «como nós». Acresce que o alcoolismo também preenche o requisito empático; num ensaio sobre drogas no cinema Cape identifica o alcoólico como «likeable, readily identifiable character who epitomizes humanities’ inherent flaws» (Cape, 2003: 168).

A música electrónica nos momentos em que Don sucumbe ao álcool inaugura o áudio semiótico do encantamento, feitiço e alienação – já a ouvimos em desenhos animados com extra-terrestres, por exemplo. Don parece possuído (inocente portanto), numa alienação alogon que remete para outros heróis possuídos: Ajax por Atena, Fedra por Afrodite, Hércules por Hera, Orestes pelas Erínias e Don, evidentemente, por Baco, um deus propenso à violência, sublinhada na visão aterradora do morcego devorando um rato que escorre sangue – cena que valeu críticas a Wilder, até Brackett, um dos seus co-argumentistas, contratacar com uma explicação freudiana da cena (Brackett 1952, p. 68). Ao som da música faz-se um close up no jogo de luz e sombras do copo cheio, finalizando a cena – o líquido parece, aliás, um leit motif do filme, uma vez que está sempre a chover.

Ao contrário dos argumentos cómicos, The Lost Weekend está cheio de coincidências (improváveis mas não impossíveis): a troca de casacos com a futura namorada no bengaleiro – momento em que lhe é dado um prenúncio da condição de Don pela garrafa que escorrega do casaco dele e se estilhaça no chão –; a conversa dos pais dela, que Don ouve por acaso, e que o leva a beber por se achar muito aquém das expectativas deles.

Como em toda a tragédia, Don chega ao fim da linha, ao «self loathing» (McKee 1997, p.319). Depois de uma alusão à prostituição, Don cai figurada e literalmente para acordar num hospício para alcoólicos, onde é confrontado com a fatalidade inexorável da sua condição, expressa nas palavras do enfermeiro: «’You’r an alky, so is he, he turns up every month like the gas bill». Um espaço de previsibilidade e condicionamento é o espaço do animal, Don perdeu a humanidade e a individualidade, é apenas mais um no meio de muitos. A balança pesa para o lado de Diónisos e não de Apolo, a escuridão instala-se: «delirium is a disease of the night» avisa o enfermeiro. Desesperado, foge do hospital para casa, onde bebe mais, delira, acorda no dia seguinte, e decide que o suicídio é a única saída. A namorada chega e apercebe-se da intenção suicida de Don, assustadoramente sóbrio. No dilema trágico ela escolhe o mal menor, servir-lhe álcool – bêbado é melhor que morto. Todavia Don persiste heroicamente em acabar com a vida. Eis que chega a salvação ex machina: a máquina de escrever perdida de Don. A incongruência é inteligentemente atenuada quando a namorada exclama «it’s a miracle!». A máquina, como uma espada mágica, permite a Don agarrar o eu escritor e o final é feliz: «I’ll take this weekend and put it all on paper». No caso de Don o desejo do herói trágico foi atendido: deter as rédeas da vida, ser autor da sua própria história. Ora não só esta passagem inesperada à felicidade anulou a catástrofe, como o truque ex machina foi colocado no desenlace, exactamente onde Aristóteles e os story doctors proíbem «never use coincidence beyond the mid point of the plotting» (McKee 1987). Eurípides recorre várias vezes a este esquema, facto que já foi identificado como ironia. Isto é: se a resolução ou desenlace é irracional, fica sublinhada a irresolubilidade do problema pela quebra do realismo apresentando a solução como puramente ficcional. Sendo um mestre do argumento sólido, a solução de Wilder para salvar Don também pode ser interpretada da mesma maneira: dizer que só um milagre, alogon, salva Don, enfatiza a fatalidade do alcoolismo.


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Double Indemnity (1944) foi considerado o primeiro film noir, sendo que tem havido tentativas de circunscrever o trágico no film noir (Scruggs, 2004), pela sua evocação da falha humana. Todavia, tanto falhar, como a possibilidade de falhar, como a de acertar por um triz, são invariáveis na ficção escrita e audiovisual (Mello, 2011). E se o noir representa a interligação psicológica entre vida pública e privada, também muita ficção, começando na tragédia grega, mimetizou o desequilíbrio oikos/polis (Zeitlin, 1986). É claro que podemos pensar um noir para além do estilo film noir, como um trágico para além da tragédia. Estilo e forma fundem-se na projecção da luz das janelas na casa de Phyllis, desenhando riscas que lembram as grades de uma prisão, o que para mim funciona mais como augúrio trágico, do que como expressionismo histórico. Em suma Double Indemnity não é mais trágico por ser um film noir – Em Ace in the Hole, talvez o mais trágico deste conjunto, não há femme fatale, e tudo acontece sob a luz tórrida do Sol. O próprio policial – embora dependa da causalidade lógica professada por Aristóteles – também escapa à linha do trágico quando a história se centra mais na descoberta do culpado do que na descoberta do que levou X, que não é criminoso, a cometer um crime. Justamente para não fugir da linha muitas tragédias revelam o desfecho antes do início, ou porque o poeta o revela logo no prólogo, como Eurípides e Wilder, ou porque o público em geral já conhece a lenda.

Geralmente a metáfora que transporta o film noir para a tragédia é a figura da femme fatale, tida como representação da hybris (Bronfen, 2004). Para Bronfen a tragicidade da femme fatale assenta no facto de ela ter uma agenda própria, representando forças do destino que o homem não domina, da qual se julga um fim quando é apenas um meio. Esta situação parece clara em Double Indemnity, e então Phillis estaria para Neff como o álcool está para Don. Todavia, como nota Prigozy (1984), as cenas amorosas entre os dois são extraordinariamente desinteressantes, enquanto as cenas entre Neff e Keyes são altamente intensas, levando-nos a concluir que a hybris de Neff não o leva a sucumbir a Phyllis mas antes a derrotar a figura patriarcal que é Keyes. Neff quer superar Keyes, quer ser mais inteligente do que ele, admirando-o e odiando-o. Não é portanto o amor de Phyllis que atrai Neff, mas o risco, o desafio intelectual: «an ordinary man who believed by mastering keyes – who symbolizes the inexorability of a system set up to prevent individuals from breaking out of their fixed boundaries – he can master the system itself» (Prigozy, 1984: 161), validando a noção de hybris como transgressão e orgulho. Tal como Édipo, Neff procura ter o mesmo pensamento puro, matemático e racional dos deuses, já Keyes representa o deus impiedoso que gosta de Neff mas que não hesita em mandá-lo para a câmara de gás (originalmente a cena final do filme). Todavia a invencibilidade de Keyes era irracional, posto que foi o «homenzinho» na cabeça dele que levou ao pânico dos dois cúmplices.


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Não duvido que o protagonista do filme Witness for the Prosecution (1957), baseado numa história de Agatha Christie, seja o velho advogado, a quem um médico recomenda descanso absoluto, Sir Wilfred. Logo no início do filme aparece-lhe no escritório um cliente desesperado, acusado de um crime que  diz  não  ter  cometido,  mas  com  provas  altamente  incriminatórias.  O irracional joga o seu papel fatal logo na sequência inicial: Wilfred faz ao cliente o teste do monóculo (que funciona como o homenzinho de Keyes). O espectador torce o nariz ao truque ex machina, idêntico ao detector de mentiras. Sem fundamento racional, Wilfred não chega a convencer-se da inocência do cliente, mas pelo menos suspeita fortemente da sua culpabilidade.

A estrutura parece puramente policial, uma vez que se trata de descobrir quem é o criminoso. Todavia a hamartia não é o eventual crime do cliente, mas sim tanto a curiosidade do advogado e o seu desejo de resolver um caso impossível, contra as ordens de descanso absoluto de uma enfermeira irritante simbolizando o sistema, como o desejo autodestrutivo de fumar (Wilfred não descarta o cliente porque detecta um ansiado charuto no bolso deste). Surge ainda Christina (Marlene Dietrich) que estende a armadilha, apelando à vaidade de Wilfred: «champion of the hopeless cause», o melhor elogio para um advogado. Wilfred é o herói trágico porque se convence de que pode controlar os acontecimentos, de que a trama válida é a dele, até descobrir que foi um fantoche nas mãos dos dois clientes. É para ele que acontece a anagnorisis, reconhecendo o amigo como inimigo ou vice-versa (Po 1452a, 30), numa sala de tribunal em que o espectador perde a conta das vezes que Deus é invocado, como que plantando nele a expectativa da justiça divina.

Ironicamente, Wilfred reconhece que a sua trama, construída com premissas falsas, não era realista, não por ser incongruente mas antes pelo contrário: «It is all to neat, to symetrical…», o aparecimento de uma testemunha chave no momento chave fê-lo desconfiar. Simetria a mais pode estragar a ilusão de real, Aristóteles avisou que o improvável é possível, e também os manuais qualificam demasiada simetria como um cheap plot trick (Ryan, 2009, p. 62). O interesse do filme, como o de Rei Édipo, assenta na mise-en-âbime das tramas, jogando com a sua irracionalidade racional e vice- versa: a de Wilfred, a do cliente, a de Christine e finalmente a de Apolo ou a verdadeira.


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Sunset Boulevard (1950) tem sido sobejamente analisado, mas aqui cabe apenas sublinhar os elementos paranormais para mim indispensáveis ao argumento que segue o molde trágico. No filme o alogon apresenta-se logo no início uma vez que temos como narrador um defunto – sendo Gillis personagem e narrador «His predicament is a poised and teasing restatement of the problem of free will and determinism» (Brown, 2004, p. 1223). Na tragédia a perspectiva dos homens é confrontada com a panorâmica dos deuses, só a imortalidade concedeu a Gillis the big picture.

A tragédia representa uma escolha (Serra, 2006), em Rei Édipo a estrada que bifurca representa essa escolha. A tragédia acontece no movimento da vida, na estrada: «I sure turned into an interesting drive way» diz o narrador. O interessante é a história por excelência e a história por excelência é a tragédia. Neff, Gillis e Tatum chegam de carro ao «fim da linha». Ao chegar ao porto seguro que parece ser a garagem de Norma, a lâmina afiada da salvação, começam os maus augúrios: a decrepitude da casa luxuosa, o enterro de um chimpanzé e a confusão entre Gillis e um cangalheiro, contrastam com o excesso de confiança de Gillis, um contraste próprio do trágico em que o problema tem de parecer menor do que é – comparativamente ao contraste cómico em que o problema parece maior do que é (Melo, 2011). Gillis não tem medo, convencido de que nada tem a perder, vê o ridículo, phaulon, onde está o grave, spoudaious.

A pergunta: «What took you so long?» anuncia o fatalismo. Segue-se o sonho profético com o chimpanzé, que Gillis ignora, mesmo tendo chegado a uma casa onde se mandou enterrar um chimpanzé num caixão forrado de seda. Gillis vem substituir esse animal, sem livre-arbítrio, coberto de sedas preciosas. O apetite fáustico de Gillis é aguçado quando Norma lhe paga as dívidas, deixando-o com a falsa sensação de liberdade. Ironicamente Gillis está preso numa casa que não tem fechaduras. Só nós sabemos que ele caminha para a morte, a frase: «I droped the hock, she snaped it» desperta temor e compaixão por Gillis.

O irracional conduz a acção: Norma quer que Gillis trabalhe para ela por ser sagitário; consulta o horóscopo para entregar o argumento a DeMille – o facto de DeMille ser ele próprio incute realismo e por isso efeito trágico, segundo Aristóteles é mais fácil fazer tragédia com personagens históricas (Po. 1451ba,10). Para Brown (2004), Norma rege as suas acções pela astrologia não só porque se identifica narcisicamente com as estrelas, só elas falam a sua linguagem, mas também porque «It merges with the deterministic cosmology of astrology to furnish a tragic, fatalistic universe, one that both clashes and strangely coalesces with the universe inhabited by Joe Gillis» (Brown, 2004: 1223). Wilder pôs em campo uma linha caótica de forças irracionais olimpianas, como os astros do horóscopo, elegendo o determinismo.

A ambição de Gillis passa de mundana a monumental, conhece uma jovem argumentista e quer o que Hollywood nunca dá: the girl and the Money. Como Neoptolemo (Andrómaca), procura conciliar tragicamente duas mulheres que representam o novo e o velho («she smells like a new car» enquanto Norma se desloca numa banheira obsoleta). No fundo Gillis não é diferente de Norma, ele quer agarrar a fama futura enquanto norma se agarra à fama passada, numa luta trágica entre o eterno e o efémero. Em suma recusar a morte, limite entre o homem e o deus, deixar de caminhar e parar os ponteiros do relógio, como pretende Gillis, subestimando a psicose de Norma que DeMille lucidamente resume: «A dozen press agents working overtime can do terrible things to the human spirit». Norma também recusa ver que «the movies have changed quite a bit», como lhe diz DeMille, como uma espécie de Tirésias, tão incomodado e relutante quanto o tebano por se ver obrigado a dizer a verdade.


©Paramount Home Video

Ace in the Hole (1951) foi considerado um filme antiamericano e imoral. O  sucesso de  bilheteira foi  quase  nulo  e é,  como  se  sabe,  o único filme produzido, realizado e escrito por Wilder. O filme é quase um decalque da tragédia grega e de tudo o que representa o trágico. Hoje é considerado um dos melhores filmes de Wilder e um dos cem melhores de sempre.

Chegado ao fim da linha – ao tal self loathing – Charles Tatum entra no pasquim de Albuquerque onde brilha na parede uma máxima que não está meramente escrita mas bordada «tell the truth». Máxima de que Tatum se tenta desviar até fatalmente cair nela e arrancar os olhos. Tatum quer apenas uma coisa: um furo jornalístico que o catapulte novamente para os jornais de grande tiragem de onde caiu, vítima de alcoolismo e desprezo. Um ano depois, ainda mais bêbado e mais entediado, conclui com ironia profética: «I am stuck here, stuck for good».

Também Tatum segue pela estrada bifurcada: em vez de cobrir uma corrida tradicional de cascavéis, cheira-lhe a sangue ao ver um carro de polícia no Café Minosa. Aí a primeira coisa que vemos é uma mulher a rezar desesperada. Um mau presságio acompanha o incidente catalisador: «there is something screwy about this place», diz o assistente de Tatum. Afinal trata-se de um homem, Leo, que ficou preso num desabamento no interior da montanha onde costumava ir procurar artefactos índios para vender no café. Este é o primeiro sinal de desrespeito pelos deuses – índios, neste caso. Literalmente Leo está preso, figuradamente também Tatum e a mulher de Leo, ressentidos numa terriola ansiando as vibrações da metrópole.

Tatum oferece-se para entrar na montanha e ver o que se passa com Leo. Todos os outros se recusam, os índios da terra porque «we never go in there: bad spirits.», o xerife porque tem medo de lá ficar preso. O temperamento heróico leva Tatum onde mais ninguém se atreve. Rasteja pelas grutas até Leo, sonhando com o Pulitzer, agarrado à lâmina de salvação. Leo, pelo contrário, reconhece a própria hybris: «I crawled in too far this time», convence-se de que é alvo da vingança dos espíritos. Deste ponto em diante Tatum vai jogar com a vida de Leo, certo de que possui um ás no baralho. O interesse próprio em detrimento do colectivo espalha-se como uma praga. A impiedosa mulher de Leo – que não vai à missa porque ajoelhar estraga as meias – trinca sinuosamente uma maçã. As blasfémias tácitas aos índios sucedem-se ao longo do filme. A maldição dos espíritos índios transforma-se em manchete para subir tiragens.

Chega o momento da escolha, proairesis: há uma solução de 12 horas para tirar Leo do buraco, mas Tatum e o xerife decidem-se por uma solução mais aparatosa e difícil que irá demorar seis dias, de modo a poderem lucrar com a situação. Tatum entra na corrida contra o tempo; toda a tragédia tem um prazo, quer sejam 24 horas quer seja apenas o pôr-do-Sol. Tatum acha que pode controlar o tempo, como um deus. As acções do herói são tanto mais grandiosas quanto mais pessoas afectam, o espectáculo mediático à entrada da montanha cresce vertiginosamente com a instalação de um parque de variedades (que arrepia o pobre pai de Leo). Tatum apresenta-se publicamente como o Salvador de Albuquerque – como Édipo de Tebas. Finalmente realiza o desejo íntimo de todos nós, não propriamente casar com a mãe mas sim o reconhecimento pelos pares – o mesmo desejo que matou Ajax, ignorando que para ser herói é necessário que os outros o reconheçam como tal, o indivíduo faz-se no colectivo. Tatum espezinha os colegas «I am in the boat, you are in the water», rejubila ao receber a contratação choruda do New York Times, redobrando a auto estima, o self worth. Entretanto Leo começa a desfalecer, o contraste da euforia pública com a disforia privada é dramático. Wilder encena a multidão como a massa passiva e observadora do coro, cuja canção temática entra agora como um punhal nos ouvidos de Tatum. Leo é o primeiro a prever o fim, como Jocasta antes de Édipo, e exige a Tatum um padre. Começa a dolorosa anagnorisis, Tatum reconhece-se como um assassino. Mesmo com uma faca enfiada no peito (literalmente) vai buscar o padre numa tentativa vã de redenção. Como manda Aristóteles, a presença dos deuses fez sentir-se fora de cena.

Charles Tatum não é «an unmitigated son of a bitch» (McBride, 1970: 7), a sua falha é universal. Do alto da «montanha dos sete abutres», do seu Gólgota, exclama: «Leo is dead, the circus is over». Na última cena redime-se cumprindo o oráculo, tell the truth, moribundo, telefona para o jornal com o melhor furo de sempre: a história de um jornalista que matou um homem só pelo desejo de um furo. Pagou com a vida, mas conseguiu, como Don, Gillis e Neff, ser o autor da sua própria história. «You can have me for nothing» é o fim da linha, o self-loathing, a «ontological homelessness» de Steiner (2004: 3).

Wilfred e Don escaparam ilesos mas nem por isso deixam de ilustrar o trágico que, nas palavras de J. P. Serra, é «(…) uma crise, uma fractura, uma desarmonia. Aí ruíram as falsas esperanças, as cómodas conciliações. Este desmoronamento, porém, prenuncia uma experiência radical, decisiva, onde nada, nem mesmo o final infeliz está garantido. Não deve por isso a tónica ser colocada no resultado, mas no processo, na experiência. Conflito liberdade, culpa, ignorância são categorias, modos primeiros de dizer o trágico» (Serra, 2006: 441).

A voz dos deuses não se faz sentir nas comédias de Wilder; em Front Page, Mathau exclama «don’t give me that unseen power crap». A comédia liberta o homem da grandiosidade trágica. A busca de glória e perfeição matou Neff, Gillis e Tatum, e quase matou Wilfred (do coração) e Don (de cirrose). A frase póstuma de Gillis «he got himself a pool, only the price turned out to be a little high», podia aplicar-se a Tatum, he got himself a scoop, only… Ora em Some Like it Hot (B. Wilder, 1959), a última frase é o paradigma cómico e atrágico: «Nobody is perfect».

 

A tragédia grega, para Steiner, encerra grandes lições seculares, dramatizando sérias questões políticas (vd. Euben, 1986), entre as quais saliento, a título de exemplo, o desequilíbrio entre o interesse privado e colectivo (Melo, 2011). As tragédias de Wilder transbordam secularidade – a questão divina que tratei participa apenas no funcionalismo ficcional. Já está sobejamente analisada em Sunset Boulevard a crítica ao star system (do qual Wilder se queixou em tantas entrevistas) e ao jornalismo mediático em Ace in the Hole, apresentado como actividade que segue perniciosamente as regras do entretenimento, oferecendo pornos e pathos, focando-se no «human interest» – enunciado em Ace in the Hole e em Front Page –, isto é, no idiossincrático e não no sóciossincrático, obrigando-se, lamentavelmente a suscitar as emoções de temor e piedade, eleos e fobos, exclusivas da tragédia.

Esta secularidade valeu a Wilder duras críticas, desde «unrelenting cynicism ultimately diluted by happy endings», até «the combination of cynicism and romanticism in the film narratives and tonal quality is driven by a self- serving urge for the box Office» (citado em McNally, 2010: 2). Ora é difícil equacionar cinismo com a tragédia, despertar compaixão (empatia ou identificação) não resulta nem com nem da aplicação do distanciamento crítico do cínico. O poeta trágico tem de sentir as emoções que escreve (Po 1455a, 28-35), e neste estudo revelaram-se denominadores comuns entre todos os personagens e o próprio Billy Wilder.
 
Um escritor, um detective de seguros, um advogado, um argumentista e um jornalista vivem da urdição, escrever é a salvação deles, como ser argumentista garantiu a Wilder o visto de entrada nos EUA, depois de ter sido jornalista em Viena, story-doctor e argumentista em Berlim. Para McBride (1970) Ace in The Hole «gives full vent to disgust buried beneath His blasé exterior» (McBride, 1970: 2), e Wilder está apenas fascinado «by the world’s corruption» (Idem: 4). Ora, muito pelo contrário, Ace in the Hole pareceu-me autocrítico. Wilder faz o mesmo que Tatum, ilustra a miséria humana para entreter as pessoas. Ex-jornalista, Wilder também tinha sonhos de glória. Consta na trivia que Wilder colocou o pé no corredor para que o rival nomeado tropeçasse ao receber o óscar de melhor filme. Há uma auto-reflexividade inegável no apetite fáustico de todos os seus heróis urdindo e criando enredos para glória pessoal e social. É preciso mentir para escrever uma tragédia, mas também é preciso dizer a verdade, que normalmente está dentro de nós.

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Bibliografía

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ISSN 1988-8848